O automóvel é sagrado?

Num domingo de setembro, a Maria, de 37 anos, queria deslocar-se no centro de Braga na sua cadeira de rodas. O trajeto foi dificultado pelos carros que circulavam e estacionavam nas ruas pedonais do centro histórico para assistir à missa da Sé.

O António, de 83 anos, circula todos os dias entre a Rua de São Vitor e a Rua Martins Sarmento. Numa e noutra tem frequentemente que se descolar pela estrada devido aos carros e obstáculos que diariamente ocupam os exíguos passeios. 

O Pedro, de 38 anos, utiliza frequentemente o autocarro para se deslocar para o Hospital de Braga ou a Escola de Medicina da Universidade do Minho. Não exsite paragem para o proteger da chuva quando espera na Rua D. Pedro V e não consegue prever a que horas passam os autocarros dado que não existe informação atualizada. Ao sair do Hospital não tem uma paragem protegida e no Bairro da Alegria nem paragens nem passeios que garantam uma deslocação pedonal em segurança.

Circular a pé, de bicicleta bicicleta ou de autocarro na cidade de Braga pode ser um tormento, uma autêntica via sacra para aqueles que não dispõem de meios económicos para ter um carro particular ou que, simplesmente, o evitam sempre que podem por uma questão de responsabilidade cívica e ambiental. 

Ao longo de décadas, Braga – tal como a maioria das cidades europeias – investiu numa rede viária que transformou as estradas do centro em autênticas vias rápidas onde o carro ocupa um lugar hegemónico e sagrado, sobrepondo-se a todas as pessoas que precisam de utilizar a cidade por outro meios. A tendência internacional é mudar este equilíbrio de forças, reduzindo as vias de circulação automóvel, limitando de forma efetiva as velocidades de atravessamento das cidades e investindo em passeios, praças, jardins e vias de ciruclação exclusivamente dedicadas a biciletas e transportes públicos.

Já todo o mundo percebeu que não é construindo mais estradas e roubando mais espaço aos passeios que se resolvem os problemas de mobilidade das nossas cidades. Pelo contrário, por cada nova via que se abre mais carros passarão a utilizá-la e maiores serão os constrangimentos e os engarrafamentos num futuro próximo.

É por isso que assistimos com perplexidade às últimas declarações do Cónego José Paulo Abreu para defender um regime especial de estacionamento para os frequentadores da missa dominical da Sé de Braga. A medida, desligada de uma política séria de mobilidade no centro histórico, não pode deixar de ser considerada como uma excepcionalidade injusta, arbitrária e desproporcionada que discrimina todos os cidadãos que necessitam de se deslocar áquela zona para qualquer outra finalidade.

Por que razão podem estacionar no Rossio da Sé pessoas que vão à missa quando todos os outros estão impedidos? Por que razão quem vai ao médico no centro histórico está excluído desta benesse oferecida pelo Município? Por que razão havemos de ter as ruas dedicadas à circulação de pessoas invadidas pelos carros de quem se atrasa para chegar à missa dominical com tempo?

Quando lemos a Encíclica “Laudato Sí” que o Papa Francisco divulgou em 24 de maio de 2015, ficámos com ideia de que a Igreja Católica estaria empenhada numa “ecologia integral” que valorizasse a proteção do meio ambiente e, ao mesmo tempo, a defesa de melhores condições de vida para os mais desprotegidos. Recordam-se de ouvir a igreja bracarense pronunciar-se sobre a premência da melhoria dos transportes públicos em Braga? E recordam-se de a ouvir defender melhores condições para a circulação de peões e bicicletas na nossa cidade? São afinal os automóveis sagrados? São os carros que poluem o centro histórico que mobilizam o clero bracarense contra a Lei e o Município?

É precisamente por estar errado na defesa dos estacionamentos abusivos na Sé que o Cónego José Paulo Abreu está certo quando se refere ao absurdo estético e desregulado das esplanadas no centro histórico. Absurdo que se estende à publicidade excessiva e à desorganização confusa das placas informativas e toponímicas da cidade.

A vida no centro histórico precisa de pessoas que ali residam e que o visitem frequentemente, de lojas com dinâmica e com clientes, de cafés e restaurante com esplanadas, de museus com oferta diversificada e, sobretudo, de uma política de mobilidade que privilegie o acesso através do transporte coletivo, da circulação pedonal e do uso de bicicletas. Além disso, precisa de uma política justa, coerente e estética de utilização do espaço público, com regulamentação e uniformização do mobiliário urbano e das esplanadas e com um sistema de sinalética harmoniozo, informativo e útil.

Se vivêssemos numa cidade onde pudéssemos chegar com segurança e rapidez a todo o lado por transportes coletivos e/ou meios suaves, a questão dos carros estacionados junto à Sé não se colocaria. Concordamos com o Cónego José Paulo Abreu – quem vai à missa da Sé precisa de melhores formas de chegar ao centro. Mas não nos convencemos de que o automóvel seja sagrado nem mereça excepções divinas. O convite fica feito – que a Igreja Católica bracarense se junte aos cidadãos que quotidianamente defendem uma sociedade mais justa, mais sustentável e mais respeitadora do meio ambiente.

Publicado no Correio do Minho

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